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Mudanças no Itamaraty fazem do trabalho dos diplomatas uma constante gestão de crise

Em agosto, um programa humorístico da principal rede de televisão pública alemã chamou Jair Bolsonaro de “boçal de Ipanema” e o “vestiu” com o monoquíni asa-delta usado por Borat, o personagem de total incorreção política criado pelo comediante britânico Sacha Baron Cohen. Também inseriu o brasileiro num clipe com cenas de queimadas e devastação florestal. Fazer pilhéria do extremismo ambiental do presidente já havia se tornado comum nos meios de comunicação europeus, mas a maior paulada não veio em chave cômica. O semanário The Economist, bíblia centenária do liberalismo, exibiu o contorno do Brasil perfeitamente desenhado no toco de uma árvore recém-cortada. Era a ilustração para a capa da reportagem sobre as mazelas que o país inflige à Amazônia.

Tudo isso aconteceu muito antes de irromper o conflito com Emmanuel Macron, com direito a flexão do verbo “mentir” e o endosso de Bolsonaro a um comentário desairoso sobre a mulher do mandatário francês no Facebook. No fim do mês, na reunião do G7 na França que Macron hospedou, o Brasil dependia de um aceno de Donald Trump para não ser considerado algo próximo de um pária mundial, um país acéfalo e quase inimputável pelo fogo que decidiu deixar arder na Amazônia.

Dos novos rumos que o Brasil de 2019 tomou, a diplomacia é uma área particularmente exposta. Embaixadores e diplomatas tornaram-se, com o perdão do trocadilho, bombeiros, numa tentativa bastante quixotesca de minorar danos nas relações com os líderes de países que Bolsonaro escolhe para bater boca – Alemanha, Noruega, Argentina, França, Venezuela, Chile, o viés é de alta. Desde a aparição solitária do presidente e séquito num bandejão durante o Fórum Econômico de Davos, em janeiro, é muito difícil para esses profissionais entenderem algo bastante trivial: o próprio trabalho. Não ajudou em nada terem se tornado objeto da desconfiança cada vez maior dos próprios chefes, fruto da reorganização interna levada a cabo pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Ao assumir a chancelaria, ele subverteu a tradicional hierarquia do Itamaraty, fazendo com que diplomatas de alto escalão tivessem de responder a superiores mais novos e inexperientes – espelhando, dessa maneira, sua própria ascensão. Araújo jamais serviu como embaixador brasileiro no exterior.

Ele ainda suprimiu secretarias e diversos departamentos, na linha da “racionalização da máquina pública” indicada pelo governo federal. E, mais problemático, tentou introjetar no dia a dia da casa sua visão antiglobalista, conservadora, temente a Deus e, principalmente, a Donald Trump.

PROFETA DO CAOS

A diplomacia brasileira já andava confusa antes da crise ambiental, mas talvez seja injusto apor apenas a Araújo o epíteto de profeta do caos. “O Itamaraty vive uma crise muito profunda. Ernesto Araújo é o sexto ministro em oito anos. A crise não começa, mas se agrava com ele, e uma das razões é sua fragilidade no trato com os colegas”, disse a PODER Maurício Santoro, professor de relações internacionais da Uerj. “Além disso, há nesse governo uma desconfiança generalizada em relação aos especialistas. Nunca vi tantos jovens diplomatas falando em deixar a carreira. É um baque muito forte.” Alguns movimentos do chanceler tiveram bastante impacto no aumento da tensão interna. Na Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), voltada para a difusão cultural, o veto à publicação de um texto de Rubens Ricupero, ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos e ex-ministro da Fazenda no governo Itamar Franco, foi visto com perplexidade. Ricupero escreveu uma peça circunscrita à figura de Alexandre de Gusmão. Era, afinal, um prefácio à biografia desse patrono da diplomacia nacional. O biógrafo, o diplomata Synesio Goes Filho, viu “censura” e “obscurantismo” no veto, enquanto o ministério alegou que a aprovação dada ao livro não contemplava um prefácio.

Seja como for, o pragmatismo que rege a atividade diplomática se voltou para dentro e passou a valer para a economia doméstica do Itamaraty. Um funcionário lotado no hemisfério norte revelou a PODER que as pessoas agora têm “bastante medo de se posicionar” e que há um “cuidado maior” nas conversas entre chefes e subordinados, já que a “informação tem circulado e funcionários têm sido prejudicados”.

Também houve expurgos. O diplomata Paulo Roberto de Almeida perdeu seu posto de comando do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri), da Funag, por, segundo ele, abrir espaço em seu blog pessoal para críticas de Fernando Henrique Cardoso e Rubens Ricupero à política externa brasileira – curiosamente Araújo também mereceu espaço no blog. Crítico feroz da agenda petista no Itamaraty, Almeida vê na escolha do ministro um processo anormal. “Desde a diplomacia do Império, tornam-se chanceleres pessoas normalmente muito mais qualificadas. Araújo era um personagem obscuro, jamais participou dos debates políticos, conformou-se perfeitamente aos tempos lulopetistas. É um diplomata sem capacidade própria, que construiu uma personalidade olavista artificialmente”, diz Almeida, fazendo referência a Olavo de Carvalho, o guru que esteve por trás da indicação do chanceler. Araújo chamou atenção no círculo presidencial ao publicar o texto “Trump e o Ocidente” na edição do segundo semestre de 2017 dos “Cadernos de Política Exterior” do Ipri – na época presidido por Almeida –, em que faz a apologia de um certo “Deus de Trump”. “O presidente Donald Trump propõe uma visão do Ocidente não baseada no capitalismo e na democracia liberal, mas na recuperação do passado simbólico, da história e da cultura das nações ocidentais. Em seu centro, está não uma doutrina econômica e política, mas o anseio por Deus, o Deus que age na história”, escreveu.

Sacralizar Trump não tem impedido o chanceler de manter contatos com o ídolo. Embora tenha sido esnobado na primeira visita oficial de Bolsonaro a seu homólogo americano – foi preterido no Salão Oval pelo deputado federal e candidato a embaixador brasileiro nos Estados Unidos, Eduardo Bolsonaro –, o chanceler teve 30 minutos com Trump depois que este voltou da reunião do G7. Estava novamente em companhia do 03, que, segundo relatos, portava-se como seu chefe. Eduardo tuitou que “a tradição da diplomacia brasileira (Barão do Rio Branco) é a boa relação c/ EUA” e que “esta visita marca uma nova fase nesta relação e dá um recado p/ mundo: os EUA não apoiarão qualquer investida contra nossa soberania”. A Amazônia ficou de fora na tuitagem de Trump sobre o encontro: preferiu celebrar a ampliação pelo Brasil da cota isenta de taxa de importação de etanol, combustível que o Brasil é grande produtor e, até onde se sabe, está bem longe da dependência externa.

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Written by Ricky Terezi

Jornalista, produtor cultural, agora blogueiro, filho de Terezinha e Alvimar.
Natural de Montes Claros-MG. Mora em New York.

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